Ao propor um método capaz de fundamentar a filosofia como ciência de rigor, Husserl pretendia recuperar a credibilidade da filosofia que vinha sendo sistematicamente abalada pelos movimentos de uma ciência orientada por uma racionalidade determinista e por um modelo causalista-explicativo. Procurando esclarecer como ocorrem as trocas gnosiológicas entre o homem e o real, a fenomenologia de Husserl se coloca no espaço eminentemente epistemológico. Em linha de colisão com a tradição filosófica ocidental, Husserl criticou o psicologismo e o positivismo, apontando para a superação da dicotomia epistemológica entre sujeito e objeto, tão cara à modernidade.
Esta unidade o filósofo de Berlim vai encontrar num princípio emprestado do mestre Franz Brentano. Radicalizada pela redução ao transcendental, a intencionalidade em Husserl sai do domínio do psicológico e, portanto, do domínio do empírico, onde se mantinha Brentano, que conduzia suas pesquisas ainda no horizonte do psicologismo. Tirando de circuito o eu psicológico, Husserl julgava ter alcançado a atitude capaz de lhe fornecer a captação do fenômeno em sua manifestação mais pura, tendo acesso, assim, às evidências apodíticas capazes de fundar sua filosofia radical e, através dela, estabelecer os fundamentos de toda a empiria.
Uma busca incansável por um fundamento sempre mais radical é o que define o movimento do pensamento husserliano. Sartre e Heidegger vão seguir por esse caminho, no rastro do apelo anti-idealista de voltar às coisas mesmas e das portas abertas à existência concreta contida na noção de intencionalidade como consciência implicada no mundo. Todavia, Heidegger, percebendo o caráter idealista do campo transcendental como concebido por seu mestre, segue em busca do sentido do ser, tratando de fundar sua ontologia numa estrutura mais concreta, o Dasein: aquele que, lançado no seio do ser, questiona-o, tendo acesso a uma parcela de sua infinitude. Sartre, ao contrário, vai radicalizar o Ego transcendental não no sentido do ser, mas no sentido da própria consciência, encontrando aí o fundamento de seu existencialismo. Uma existência ambígua, é verdade, posto que é fundamentalmente nada. “(…) toda existência consciente existe como consciência de existir”, escreve o filósofo francês ainda no começo de sua mais célebre e comentada obra, em meio aos esforços para definir aquilo que o distanciava do mestre, ao mesmo tempo que situava o projeto da fenomenologia de volta ao eixo de seu princípio mais fundamental: a intencionalidade.
Expulsando o Eu puro da consciência, Sartre trata de mostrar que a evidência da consciência para ela mesma não se dá primordialmente por meio da reflexão, mas através do que chamou de cogito pré-reflexivo, que por sua vez torna possível a reflexão. O Eu transcendental husserliano, na visão do existencialismo sartriano, é desnecessário e até nocivo. Sua presença confere à consciência um conteúdo e, portanto, uma interioridade. Com ele não se poderia mais definir o fluxo do vivido como puro ato de apreensão do mundo, como pura relação com as coisas, correndo-se o risco de cair no mesmo relativismo subjetivista e, daí, no ceticismo que o fundador da fenomenologia se esforçava por evitar. “O Eu transcendental é a morte da consciência”, afirma Sartre.
Com esse “ajuste”, liberando o campo transcendental da constrangedora presença de um segundo Eu, a fenomenologia sartriana permite compreender o Ego como nada mais que um objeto psíquico que aparece para a consciência, sendo, portanto, transcendente como qualquer objeto do mundo e segundo ontologicamente em relação à experiência intencional. Há uma experiência impessoal completa do sujeito no mundo que não necessita da reflexão para existir e que constitui a “matéria viva” dos objetos psíquicos, que darão origem à personalidade enquanto unidade transcendente, atualizando-se a cada nova experiência. O reconhecimento de si mesmo como titular da experiência é, portanto, um acontecimento psicológico, de segundo grau,que se dá como função de um acontecimento antropológico de apreensão do mundo.
Por Paulo R. Francisco
Deixe um comentário